Fórmula E é o maior laboratório de desenvolvimento dos carros, diz ex-F1

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Piloto Lucas Di Grassi fala sobre carros elétricos e os empecilhos para que essa tecnologia se torne mais acessível à população

Lucas Di Grassi na garagem da Audi no ePrix de Santiago da Fórmula E 2018-2019

Milhares de pessoas foram ao Parque O’Higgins em Santiago, no Chile, para acompanhar mais uma etapa da ABB Fórmula E no último sábado (26). Nem mesmo o calor de 38 graus espantou a animação dos amantes do automobilismo: todos os ingressos estavam esgotados há meses.

Foi a segunda vez que a capital chilena recebeu a prova, que ainda é uma novidade para os brasileiros, apesar de existir desde 2014. A Fórmula E tem ares de Fórmula 1, a principal categoria do automobilismo mundial, mas com carros elétricos em vez de motores a combustão.

“O grande laboratório de desenvolvimento de carros a passeio atualmente é a ABB Fórmula E. Mobilidade elétrica é o futuro. É muito mais barato e limpo”, disse o brasileiro Lucas Di Grassi, 34. O ex-piloto da Fórmula 1 e atual piloto da Audi na Fórmula E recebeu alguns jornalistas no ePrix de Santiago e falou sobre o campeonato e seu impacto na sociedade.

Di Grassi é um dos três brasileiros que participam da Fórmula E em 2018-2019. Os outros dois são Nelson Piquet Jr. (Jaguar) e Felipe Massa (Venturi). Confira abaixo os principais trechos da entrevista com o piloto da Audi.

Por que uma corrida com carros elétricos?

Lucas Di Grassi: Daqui a 10 ou 15 anos, a maioria dos carros vendidos no mundo vão ser elétricos, a não ser que haja pressão dos governos para manter os carros a combustão ainda sendo comercializados. O motor a combustão vem se desenvolvendo há 100 anos. Já as tecnologias dos carros elétricos começaram praticamente agora a se desenvolver em um ritmo mais acelerado.

Nesse cenário, a ABB Fórmula E é muito mais um laboratório para as montadoras hoje em dia do que a Fórmula 1, no sentido de tentar entender como essas montadoras vão produzir esse tipo de carro no futuro. Será através dos testes na corrida que elas vão chegar em qual é o melhor produto, o melhor sensor, o melhor tipo de magneto, o melhor software de controle das baterias dos carros elétricos, por exemplo.

Mas os carros elétricos ainda são caros…

Os carros elétricos em si ainda são mais caros do que os carros movidos a motor de combustão porque são um produto de importação, não tem demanda, volume. Mas, uma vez que você tem um carro elétrico, seu custo de manutenção é muito mais baixo. Não tem que trocar óleo, pastilha de freio, freio etc.

A indústria de carros com motores a combustão ainda é subsidiada no Brasil. Quando as montadoras começarem a produzir carros elétricos em massa e o preço cair, a absorção vai ser muito grande, não tenho dúvida. A mobilidade compartilhada vai ajudar nesse processo de mudança de hábitos, como os patinetes elétricos e as bicicletas.

Além do pensamento das pessoas, é preciso mudar também as estruturas das cidades, não?

Temos que entender como as cidades se comportam. Existe a mobilidade elétrica “fake”, que é quando você queima carvão para gerar energia e, com isso, abastecer os carros elétricos. Aí, não adianta. A única conta que não faz sentido para o carro elétrico é queimar carvão. Mesmo se você tiver uma termelétrica a diesel, já faz sentido.

Mas, no caso do Brasil, a gente tem matriz energética pura. A gente tem as hidrelétricas, que são renováveis, nossa principal fonte de geração de energia, e cada vez mais a geração solar está presente no país. A média de incidência solar no Brasil é maior do que a máxima alemã. A gente tem área, tem capacidade. O Brasil é um país em que o desenvolvimento das cidades inteligentes faz totalmente sentido.

Qual a maior vantagem? E os desafios?

Tem uma grande vantagem que é a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Hoje, São Paulo é super poluída. Quando tivemos a greve dos caminhoneiros, saiu um estudo que mostrou que a cidade de São Paulo foi uma das mais limpas do estado em 3 dias sem caminhões. Imagine como mudaria toda a dinâmica da cidade se os automóveis fossem elétricos.

É claro que tem desafios. Um deles é que é preciso criar uma estrutura de recarga dos carros elétricos, melhorar cada vez mais a potência de recarga, que é onde empresas como a ABB trabalham bastante, mas é o caminho do futuro. E, no médio prazo, quem sabe, a gente já começa a falar em carros elétricos autônomos.

Aí, o custo com mobilidade vai baratear ainda mais, até 80% do valor gasto atualmente com os veículos movidos a combustão. Ou seja, um trecho de Uber por exemplo que hoje você gasta 10 reais, vai gastar 2. Tem obviamente questões que devem ser debatidas, como as éticas, associação sindical etc, mas do ponto de vista dos benefícios para a mobilidade e o bolso população, é ótimo. É tornar a tecnologia acessível.

E o Brasil, como está?

Estamos passando por um momento transitório interessante e o Brasil já está ficando para trás. Os governantes devem ajudar no sentido de desenvolver ou aprimorar a legislação, a regulamentação e a parte tributária do setor, além de incentivar a indústria nacional. Se a gente começar a construir carros elétricos brasileiros, geramos empregos, melhoramos a mobilidade no país, melhoramos o meio ambiente e tornamos a tecnologia acessível a todos.

Eu não acho que a saída [para desenvolver os carros elétricos no Brasil] deve ser o subsídio. Tem que primeiro deixar de dar subsídio para o setor de petróleo. Assim, conseguimos comparar laranja com laranja. É preciso parar de dar subsídio de IPI para carro 1.0, que é 3%. O IPI de bicicleta elétrica, por exemplo, é de 35%.

É preciso regulamentar melhor. Controlar caminhão e carros antigos, motos de dois tempos. Sou contra subsídio porque acho que isso enfraquece a indústria. Mas sou a favor de todo mundo ter a mesma base de comparação.

Se o governo quer mesmo usar subsídio, que seja para incentivar a indústria nacional. A ABB Fórmula E é importante por causa disso, para contar essa história. É para mostrar à sociedade como ela pode melhorar bastante com a transição da mobilidade de transição para os carros elétricos. O Brasil tem que estar à frente disso.

Temos marcado o início da conversa sobre a eletrificação de logística brasileira em 2035. A Inglaterra já vai ter banido totalmente carro a combustão até lá. Isso é lobby. A gente precisa fazer o contrário. Precisamos priorizar a mobilidade sustentável.

A indústria nacional automobilística gera tanto emprego que se a gente não se modernizar vamos ficar recebendo o que for considerado resto para o mundo e gerando cada vez menos empregos. Nesse ponto, os governantes têm que levar a conversa para o lado certo —e o quanto antes.

Levar a Fórmula E para o Brasil ajudaria?

Se a gente levar a ABB Fórmula E para o Brasil, não vamos resolver todo o problema, mas vamos chamar mais atenção para o assunto. A ABB Fórmula E conta toda essa história. Por um lado, essa greve dos caminhoneiros foi boa porque as pessoas começaram a olhar para alternativas aos carros a combustão. E precisam.

A grande dificuldade de a gente ter a ABB Fórmula E no Brasil, em São Paulo ou outra cidade, é que o país está em condições financeiras ruins. Todos os eventos que temos no Brasil têm aporte de dinheiro público, inclusive a Formula 1, que gera um custo para a cidade. Os estados têm interesse, mas teriam dinheiro para trazer um evento desse porte? Espero que sim, e em breve.

Corrida da ABB Fórmula E em Santiago, em 26/01/2019

LUCAS DI GRASSI NA FÓRMULA E
• Equipe: Audi
• Temporadas: 4
• Corridas: 47
• Títulos: 1 (2016/2017)
• Vice-campeonatos: 2 (2015/2016 e 2017/2018)
• Terceiro lugar: 1 (2014/2015)
• Vitórias: 8 (Beijing/2014, Putrajaya/16, Long Beach/16, Paris/16, México/17, Montreal/17, Zurique/18 e Nova Iorque/18)
• Pódios: 27
• Recorde de pódios consecutivos: 7 (em 2018: Punta Del Este, Roma, Paris, Berlim, Zurique, Nova Iorque-1/18 e Nova Iorque-2/18)
• Em 2018, se tornou o primeiro piloto do mundo a vencer uma corrida disputada na Suíça após um banimento de mais de seis décadas causado pelo mais trágico acidente da história do automobilismo internacional, em 1954
• Foi o vencedor da primeira corrida da história da F-E, em Beijing (China), em 2014
• Em 2016, liderou um projeto que levou um F-E para a calota polar ártica, tornando-se o primeiro piloto a acelerar naquela região. A meta era chamar a atenção para o aquecimento global
• Foi escolhido em maio de 2018 para ser representante do Programa Para o Meio Ambiente da ONU, com a missão de conscientizar os fãs do esporte sobre os problemas respiratórios causados pela má qualidade do ar

Fonte: Exame